31 Outubro 2014
O Papa Francisco está entre os inúmeros vigários de Cristo que guiam a Igreja há já 2.000 anos, um dos pouquíssimos, a meu ver até mesmo o único, que enfrenta o problema da Verdade e, portanto, do absoluto.
Publicamos aqui o editorial de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 28-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
É muito difícil, e para mim em particular, que há muito tempo cheguei a considerar Berlusconi como um desastre não só para a nossa vida pública, mas também para os pensamentos e as relações da Itália em nível internacional, interessar-me pelo que Zygmunt Bauman escreve sobre o Papa Francisco.
Há poucos dias, publicamos um artigo seu no La Repubblica, que trata a fundo essa questão e tem um título extremamente significativo: "Quando o papa ama o diálogo verdadeiro mais do que a verdade".
É retirado de uma dissertação proferida na Universidade Católica de Milão, e é muito clara a intenção do autor que o título respeita fielmente: o diálogo verdadeiro tem mais senso do que a verdade absoluta.
Esse tema levanta, como é evidente, uma série de problemas, que põem em discussão "o absoluto" e, justamente, a Verdade que o representa. Já se tinha ouvido falar de um pontífice que representa o Vigário de Cristo na terra pôr em discussão a Verdade absoluta?
O texto de Bauman descreve com muita clareza o grupo de questões que o seu artigo, mas sobretudo o que o Papa Francisco disse, levanta. Cito a parte essencial desse texto: "A verdade é uma ideia agnóstica pela sua origem e pela sua natureza. De fato, é um conceito que só pode surgir a partir do encontro com o seu contrário, com um antagonista. A Verdade está à vontade em um léxico monoteísta e, em última análise, em um monólogo, e, efetivamente, usar 'verdade' no singular, em um mundo polifônico, é como querer aplaudir com uma mão só. Com uma mão só, pode-se apenas dar um tapa ou fazer uma carícia, mas não aplaudir. O Papa Francisco não só prega a necessidade do diálogo, mas a pratica. De um diálogo verdadeiro entre pessoas com pontos de vista explicitamente diferentes que comunicam para se compreender. Foi uma decisão muito significativa por parte de Francisco conceder a primeira entrevista do seu pontificado ao abertamente anticlerical La Repubblica, representada, com Eugenio Scalfari, por um decano do jornalismo que não faz segredo de não ser crente. Para o futuro da humanidade em um mundo irreversivelmente multicultural e multicêntrico, a aceitação do diálogo, portanto, é uma questão de vida ou morte".
Agradeço ao amigo Bauman pela citação que, além do mais, é pertinente ao tema. De fato, é um tema ou, melhor, um grupo de temas que domina ou deveria dominar o mundo inteiro, mas, infelizmente, não é assim, porque uma parte relevante dos povos, embora sendo culta e notável na política, na economia, nas ciências sociais, na medicina, é indiferente, porém, a essas questões.
Indiferente no sentido de que as remove, porque remetem ao inevitável encontro com a morte, e a morte é algo de compreensivelmente preocupante. Alguns pensam que ela é o fim de tudo, outros esperam que seja o início de uma nova vida, ainda que de formas muito diferentes da anterior e bem conhecida.
No entanto, é um pensamento inquietante, qualquer que seja o modo pelo qual se define e, depois, é removido, escondido em alguma caverna interior, a partir da qual começa a sair apenas quando a idade está no encalço, e aquele encontro se aproxima. Não se conhece nem o como nem o quando, mas se sabe que ocorrerá, e a remoção se torna, a partir de um certo ponto de vista, ainda mais necessária, mas, a partir de outro ponto de vista, cada vez menos possível.
O Papa Francisco, portanto, está entre os inúmeros vigários de Cristo que guiam a Igreja há já 2.000 anos, um dos pouquíssimos, a meu ver até mesmo o único, que enfrenta, desse modo, o problema da Verdade e, portanto, do absoluto. Em uma recente conversa nossa, eu lhe pedi que me explicasse o que é, para ele, a Igreja missionária, da qual ele fala continuamente e encoraja o seu crescimento.
A resposta foi, acima de tudo, uma premissa: "Eu cresci religiosamente na Companhia de Jesus e ainda sou inteiramente jesuíta. Você, recentemente, escreveu sobre isso, mas muitos duvidam, mesmo porque, embora podendo escolher como nome pontifical o de Inácio, nunca usado até agora por nenhum pontífice, eu escolhi, ao contrário, o do Santo de Assis. Este também nunca tinha sido escolhido antes, mas por que um jesuíta que tal se sente da cabeça aos pés não escolhe o nome de Inácio, mas o de Francisco?".
Eu lhe disse que acreditava saber por que, ou seja, porque Francisco era um místico, e ele gosta dos místicos, mesmo não o sendo de fato.
"É verdade, essa é certamente uma das razões, e talvez a primeira, mas não a única. Francisco gostava de uma fraternidade itinerante de freis que haviam renunciado a todos os prazeres da vida, mas não à alegria, não à alegria, não ao amor. Alguns deles, e ele sobretudo, eram profundamente místicos em cada ato, em cada instante da sua vida, no sentido de que se identificavam com Nosso Senhor, esqueciam o seu eu. Sentiam o amor por ele e pelas criaturas que ele, junto com o Pai, havia criado: as estrelas, os pores-do-sol, as flores, os animais, as mulheres, as crianças, os idosos, em suma, tudo o que nos rodeia e ao qual nós só podemos oferecer o amor em todas as suas manifestações filiais, fraternas, paternais. Esse foi o Santo de Assis. A sua proximidade a Santa Clara é um dos sinais mais significativos, mas o que o identifica no misticismo permanente são os estigmas que, em um certo ponto, apareceram nele como haviam aparecido nas mãos do Senhor. Isso não significa que ele não se ocupava também de questões práticas, concretas e eu diria políticas. Ele queria que a sua fraternidade tivesse regras, e passaram muitos anos para que o papa lhes concedesse a ele. No entanto, foi posta uma condição: uma parte dos freis franciscanos devia preparar e se alojar em conventos especiais, e apenas outra parte seria missionária e itinerante. Francisco aceitou. Os dos conventos redescobriram São Bento, o estudo, o trabalho e a mendicância; mas a verdadeira Igreja franciscana missionária foi a itinerante."
Por que, Santo Padre – perguntei-lhe –, a Igreja deve ser sobretudo itinerante e também missionária? A resposta de Francisco foi imediata: "Nós devemos falar as línguas de todo o mundo, o que não significa apenas e necessariamente as linguagens propriamente ditas. Pense que na China existem ao menos 50 mil linguagens diferentes. A Igreja missionária deve entender, acima de tudo, as pessoas que encontra, o seu modo de pensar, a sua sintonia. Essa é a premissa que, como você vê, é, ao mesmo tempo, franciscana e jesuítica, porque a nossa Companhia sempre fez isto: entender os outros, sejam miseráveis socialmente, despreparados culturalmente ou cultos, notáveis na vida social. E ainda menos relevante para esse conhecimento dos outros são as suas posições políticas, importantes para a vida pública dos povos, mas não para a religião. A religião abomina o politiquês, não é e não deve ser coisa nossa. Se, por política, se entende uma visão do bem comum que, para nós, é aquela que está contida na nossa religião, então, sim, a política também se torna importante, as instituições se tornam importantes para o bem de todos, pobres e ricos, cultos ou ignorantes, mulheres, ou homens, ou crianças, ou idosos. O povo deve se dedicar e realizar essas instituições, mas não elevando o nome de um deus. Ninguém pode se apropriar do nome de um deus que é ecumênico e criador".
E, então, o que a Igreja missionária, pela qual o senhor tem uma atenção tão grande, deve fazer? "A Igreja deve entrar em sintonia com as linguagens das pessoas que encontra, entender como pensam, quais são as modalidades das suas relações com os outros e consigo mesmas e, uma vez entendido isso, a Igreja exorta as pessoas que encontrou rumo ao bem, deixando claro o livre arbítrio que o Criador concedeu a nós, seres humanos."
Lembro-me dessas conversas com Sua Santidade, que começaram há cerca de oito meses e se repetiram várias vezes, a última das quais em setembro passado. As reflexões do amigo Zygmunt Bauman me levaram a retomar esses conceitos que ele também, pelo que eu li das suas várias intervenções e, particularmente, na última no La Repubblica, acompanha com interesse e, em grande parte, acredito, compartilha.
Certamente, ele concordará comigo em um aspecto, além do mais, essencial: os papas sempre reformaram a Igreja, dentro e também fora. Mas, principalmente, dentro, nas regras que as várias ordens se deram, nos modos com os quais os seus membros convivem entre si e nos poderes que eles têm em relação à Igreja-instituição.
Fora, essas atualizações foram muito mais raras. O cardeal Walter Kasper comparou a Igreja a um castelo com uma ponte levadiça quase sempre levantada. O Papa Francisco retomou essa frase e a comentou, dizendo que, se a ponte levadiça não for baixada e, portanto, não permitir a entrada e a saída, então a Igreja corre o risco de morrer.
O Concílio Vaticano II, que ocorreu há mais de meio século, se concluiu, em total discordância com o Vaticano I, exortando a Igreja a tomar contato com o mundo moderno. Se eu entendo bem, tomar contato significa compreendê-lo, entrar, como diz o papa, em sintonia com ele.
E a verdade? O papa rejeita a palavra "relativismo", isto é, um verdadeiro movimento com características de política religiosa. Mas não rejeita a palavra "relativo". O relativismo não, mas, que a verdade é relativa, esse é um fato que o papa reconhece, e o título e a dissertação com Bauman lhe dão fé plena.
Naturalmente, há a doutrina elaborada pelos pensadores religiosos da patrística e por aqueles que se sucederam ao longo dos séculos até chegar a Domingos e a Tomás, e até a Carlos Borromeu. Eles elaboraram, cada um ao seu tempo e ao seu modo, a doutrina cuja fonte principal, no entanto, foi Paulo, apóstolo por autodesignação. A doutrina foi elaborada principalmente por ele e, em parte, pela comunidade judaico-cristã de Jerusalém, liderada no seu tempo por Pedro e Tiago.
A doutrina que nós lemos, cristãos ou não cristãos, é o relato que os evangelistas fizeram da vida e da pregação, e mais da pregação do que da vida, da qual os pontos culminantes foram o discurso da montanha, a última ceia, a meditação solitária do Getsêmani e, por fim e acima de tudo, a crucificação.
Esses relatos, como eu lembrei várias vezes, mas acredito que seja útil repetir, foram escritos por pessoas que não conheceram e nunca viram Jesus de Nazaré; relatos de segunda mão, se não até de terceira, que, além disso, forneceram ao longo dos séculos, embora com contínuos remanejamentos, uma estrutura doutrinária que deu apoio à religião.
Do mesmo modo, outras religiões monoteístas nasceram de relatos, porque deus não fala com a sua voz. Deus não tem voz, assim como não tem nome e não tem figura imaginável. O Filho a tem, e, talvez justamente por isso, os cristãos o inventaram, assim como as outras religiões monoteístas inventaram as suas figuras, representáveis e imagináveis, começando pela de Moisés e encerrando com a de Maomé e dos seus sucessores.
Eu gostaria muito que o amigo Zygmunt Bauman, se tiver tempo e vontade, expressasse a sua opinião sobre estes e outros problemas pertinentes.
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O vigário de Cristo e a verdade relativa que leva a Deus. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU